quarta-feira, 14 de abril de 2010

Ventre

Creio que não tenho mais que dois meses de vida. Entrevado, deitado nesta cama, as mãos descarnadas, a face lívida, o conjunto irreconhecível; os pés imóveis, a memória incompleta, graças à amnésia. Talvez eu já tenha morrido, mas como nunca fui crente, esta ilusão de vida seja uma pilhéria de Deus e de todos os santos, que zombam do meu corpo meio morto. Vingança de Deus.
Tudo me parece possível. Esta pode ser a provação pela qual eu tenha que passar para tornar-me um ente divino. Não! Chega de conjecturas! Não tenho tempo para isso, seria mais sensato recordar toda a minha vida, antecipando o julgamento do bom Deus, meu Deus que nunca me faltou, que nunca me encontrou, meu bom Deus que colore meu destino fatal com cores de ilusão; meu Deus, meu carrasco em pele de salvador! Agora creio nisso. Mas como? Minhas lembranças resumem-se à vida nesta cama. Não sei por quanto tempo dormi, e não lembro de nada do que precedeu esse sono. Agora estou acordado; sinto falta de cigarros e bebidas, de jogos e mulheres.
Olho ao redor. Há, neste quarto, algumas imagens de santas, porém tão decrépitas que suponho uma aparição de satã diante delas, por isso suas fisionomias assustadas. Não, elas não estão pálidas; estão envelhecidas.
Não há um enfermeiro, um camarada para contar-me as novidades; algo sobre suas filhas, ou os detalhes do fatídico dia em que encontrara sua esposa dormindo com outro rapaz, uns dez anos mais novo – depois de ter ficado um bom tempo acordada com ele, mostrando-lhe o que escondia do marido.
Há uma porta neste quarto. Ninguém entra por ela, apenas o ar gélido que maltrata meu corpo inválido; ora se atenua, ora se dissipa. “Tirem-me daqui!” Esforço inútil. Minha voz parece um estertor. Quando a escuto através do eco, percebo seu som fúnebre. “Tirem-me daqui!” É o eco, outra vez, para lembrar-me de que estou só – ou seria outro enfermo, no quarto ao lado?
As lembranças vêm e vão, exatamente como eram antes de serem chamadas assim. Nenhuma consegue fixar-se, todas são amorfas; não me proporcionam noção de tempo e espaço. Seria eu personagem único de minha própria vida?
Sou um pobre-diabo e em breve serei um insepulto. Será que os vermes conseguirão subir nesta cama, comendo, dessa forma, meu corpo morto? Pobres vermes! Membros inválidos causam ainda mais fome.
Meu nascimento é comparado ao anátema mais tenebroso da terra. Não sei por que, ou melhor, eu sei, mas não me lembro.
Cessem as reflexões! Começo, neste momento, a lembrar-me de algo: Uma mulher – quem será?! Uma fumaça. Passou. Alucinações, vertigens; começo a suar. “Tirem-me daqui! Tragam-me cigarros!” O desejo de fumar resseca-me a garganta. E quando eu sentir sede? Prevejo mais sofrimentos. Se fosse fácil morrer...
Momentos de solidão extrema remetem ao túmulo recentemente ocupado: tudo é lembrança; momentos de solidão e amnésia remetem ao túmulo vazio: ausência, vacância. E qual seria o significado de ausência? Estado no qual algo se encontra sem tempos idos ou vindouros. Não! Isso já é alguma coisa. Ausência não possui definição; possui apenas exemplo: eu.
Que direito o homem tem sobre si mesmo? Às vezes ele se sente coagido a tomar alguma atitude, seguindo padrões alheios, aleatórios e obscuros. Mas qual o critério? Cadê a liberdade? Ser livre, para mim, agora, seria locomover-me, levantar-me e partir daqui, sem deixar vestígios, sem possuir lembranças de um hospital sem enfermeiros.
Ocupo o tempo que me resta nessas reflexões. Não consigo mais adormecer; meu sono diário evade-se, sentindo o eterno aproximar-se.
Há momentos nos quais o sono assemelha-se ao despertar...
Tenho medo de aranhas, mas desejaria agora sentir uma subindo pelas minhas pernas. Todavia, não a sinto. Se, de fato, ela estiver aqui, irei senti-la apenas quando atingir meus membros superiores, meu rosto. Mas já é tarde. Não há. Ou melhor, há, mas não há sensibilidade. Nunca uma aranha me pareceu tão necessária. “Tragam-me cigarros e aracnídeos!” Se possuísse um reino agora, trocá-lo-ia por uma aranha.
Paula: Esse nome vem-me a cabeça aleatória e espontaneamente, parece querer transpor as barreiras de minha severa amnésia. Sinto-me excitado, estou curado! “Tragam-me cigarros, preservativos e encontrem ao relento uma mulher chamada Paula!”
Ninguém me ouve. Sinto-me vítima de um engodo, criado pelo meu próprio desejo sexual frustrado. Quem seria a Paula?
Sinto raiva de mim; minha loucura deixa-me furioso. Se pudesse andar, lançar-me-ia contra um veículo a toda velocidade, tomando cuidado para não lesionar a cabeça, para lembrar-me de como fiquei nesta condição.
Meus olhos correm avidamente pelo meu círculo de visão. Já conheço todos os detalhes deste quarto: as saliências nas paredes, as arestas que se encontram com dificuldade; a poeira acumulada, incapaz de propagar-se por entre os móveis, que não existem. Nada existe, aliás. As paredes são apenas limites de minha visão. Sei, porém, que há um infinito além delas. Ou, talvez, vários.
Penso: Fui seqüestrado! Aterrorizo-me com essa ideia. Invadiram minha casa quando minha esposa estava no trabalho e meu filho, provavelmente, na escola. Eu entraria mais tarde no emprego, estava fazendo a barba tranquilamente, quando quatro sujeitos me imobilizaram e me levaram, entre socos, pontapés e insultos. Ligaram para minha casa, pedindo o resgate, um preço muito além do que mereço, certamente, e minha esposa, desesperada, gritou. Gritou tanto que meu filho também começou a gritar; os cachorros, assustados, começaram a latir. Em um quarto de hora, toda a vizinhança gritava; todos os cachorros latiam; as flores dobravam-se; o mar agitava-se; todos gritavam. A polícia recebeu o alerta e três policiais foram averiguar. Descobriram que o epicentro da gritaria era na minha casa e minha esposa disse-lhes: “Meu marido foi seqüestrado.” A polícia, sem pistas, não sabia onde eu estava alojado, os bandidos irritaram-se com a demora do pagamento e tentaram matar-me. “Ele está numa situação pior do que a nossa. Façamos uma caridade: matemos esse pobre rapaz.” Infelizmente, não conseguiram.
Não é nada disso, mas o ócio permite-me criar histórias inverossímeis.
Ouço rumores longínquos. Uma agitação urbana parece apossar-se de uma câmara vizinha à qual estou hospedado. Falam alto, malditos. Acabaram com meu sossego. Externo, obviamente. Meu interior encontra-se tal qual uma embarcação à deriva, sem tripulantes. Tiram-me a tranquilidade e não podem devolver-me os movimentos. Malditos! Uma mulher grita, com o pouco de força que lhe resta. Grito também. Se eu posso ouvi-los, eles também devem ouvir-me. Mas quem disse que o mundo é justo?
Os rumores não cessam, penso ser minha mulher lutando contra os bandidos que não me sequestraram. A balbúrdia aumenta.
Em meio à confusão, distingo perfeitamente uma voz divina, celeste, inefável, que me diz:
-Número setecentos e onze, é chegada a hora de concretizar tua metempsicose.
É Deus.
Estou reencarnado, não sou mais um feto imobilizado pelo órgão materno que julgava ser um quarto apertado.

12 comentários:

  1. Que delícia, amor!
    Um conto com alguns aspectos dissertativos, gerando inúmeras reflexões, como o infinito, liberdade, loucura. Principalmente loucura e tempo.
    Lembra muito Graciliano Ramos. Você mergulhou profundamente na personalidade do personagem. Genial!
    Depois de render-me a tua poesia, rendo-me também a tua prosa.
    Uma frase pode mudar todo o curso de um texto. Sabe quando eu comecei a perceber do que se tratava o texto?
    "Há momentos nos quais o sono assemelha-se ao despertar..."
    Sabia que tinha algum propósito nessa frase. Mas não sabia que você iria mais longe com ela.
    Grandes escritores são assim. Estalam os dedos e a história acaba de uma maneira que ninguém esperava.

    ps.: Deus chama seus filhos por número? haha
    Adorei a pitada salgada de ironia no texto.
    "meu Deus, meu carrasco em pele de salvador!"
    Esse texto vai dar o que falar. Católicos e evangélicos muito focados não devem gostar.
    Eu adorei. rs
    Beijos. Te amo.

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  2. Ei Fê!
    Nossaaaaaaaaa...
    Que descrição...
    Um conto que talvez descreva o estado momentâneo da alma...
    Pior que o corpo doente é o espírito!

    Cada vez que volto aqui, sinto você flutuando... usando, brilhantemente, as palavras.

    Parabéns, Fê... aprendo muito com vc. A cada texto lido minha admiração pelos seus escritos cresce mais.

    Bjinhos.

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  3. Lindo esse teu post...
    bjus

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  4. Interessante é notar como vai se construindo uma certa afinidade do personagem com o autor e consequentemente com o leitor. A escrita é inteligente, a estória nos prende e o final é digno do desenrolar... Sempre maravilhoso.

    beijo!

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  5. Voltei aqui pra dizer que pesquei muitas ideias existencialistas, coisa que eu ADORO. rs

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  6. Esse texto vai de um extremo a outro. Porque ela extravasa palavras com tamanha profundidade. Dá para sentir o âmago do sentimento. Uma coisa interna, intensa, afobada, bem abafada.

    Bem interessante esse conto. Você é um escritor nato.

    Abração ae.
    =D

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  7. AêÊê!!! fiquei feliz que voce tenha voltado!
    As vezes é bom dar um tempo disso tudo né!

    Meio triste esse texto eim! =/
    PELO MENOS EU ENTENDI DESSA MANEIRA

    Boa semana pra voce
    beijão

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  8. Maldito comunista! Argh!

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Encontrei seu blog ao acaso, mas ao ler o conteúdo de suas palavras percebi que não deveria julgar como mera coincidência. Eu precisava parar para te agradecer pelos intensos e vívidos sentimentos que sua história me proporcionou. Me faltam palavras diante das suas grandes palavras.

    Obrigada.

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  11. Adoro suas postagens...

    Tuas estórias deixam um pouco de luz, criam expectativas e são ternas!!!

    Um beijo e boa semana!!!

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  12. Tua criatividade me espanta. É tão diferente de tudo que vejo, de tudo que leio. As palavras casam, antigas, em frases de efeito. Suspirei dessa coisa louca.

    :* querido

    _
    A postagem coletiva 'tá de cara nova e proposta nova. Espia lá e participa com a gente!

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