quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Abismo

O garoto estava à espreita; observava a presa a fim de dar o golpe e fugir sem ser visto. Era preciso um trabalho meticuloso de reconhecimento da área, dos transeuntes, dos possíveis pontos de fuga. Todo o plano materializado na mente, tinha experiência em pequenos furtos.
Etnia: negro; estereotipado: marginal. Quando nascera, grafaram-lhe na consciência: “Flagelado social”. Tivera família, mas era como se não tivesse. O pai morrera vítima de um acerto de contas entre os traficantes dissidentes do local onde habitavam. Rodrigo, a mãe e os três irmãos tiveram sorte e conseguiram escapar, o mais novo com um ferimento na perna.
Rodrigo ia à casa, em média, duas vezes por semana, com uma pequena quantia de dinheiro roubada dos pedestres da Central do Brasil. Era preciso dividir o dinheiro: o crack, vício que adquirira para ser destemido; o chefe da guarda policial responsável pela área e as despesas da casa. Aprendera a resignar-se, e até considerava-se feliz.
Fabricara uma arma, composta por metais e madeira, com um pedaço de arame para prender a extremidade pontiaguda que ele utilizava para amedrontar suas vítimas e, se preciso, feri-las. Não pensava duas vezes: “Quando me pegarem, não terão piedade de mim.” , dizia consigo. Entretanto, nunca havia matado ninguém.
Agora, ali, defronte ao escolhido, na iminência de atacá-lo, pensava nas possibilidades; evitava encará-lo diretamente; não queria chamar atenção. Branco, esguio. Não tinha tempo para analisar-lhe o olhar. “É agora”, pensou. Enfiou a mão no bolso, pegou o vidro que continha a cola e cheirou. Sentiu-se forte, despiu-se de temores. Como se o destino o ajudasse, a presa deixou cair no chão seu maço de cigarros. Quando se abaixou para pegá-lo, Rodrigo, ágil, hábil, enfiou a mão no bolso do homem, empurrou-o para ter tempo de fugir e correu. O rapaz caiu, atordoado e, quando procurou, viu apenas algumas pessoas que o cercavam, assustadas e preocupadas se o rapaz havia se ferido.
Ninguém vira. Rodrigo, a salvo, disse consigo: “Não foi preciso usar a arma. Mais fácil do que tirar doce de criança é tirar carteira de otário.” Abriu a carteira: duzentos e cinquenta reais, alguns cartões de créditos, um papel que continha telefones importantes e uma foto. “Deve ser a namorada.”
Domingos, policial, viu o menor. Aproximou-se: “Cerol, o que tem aí?” Cerol era como Rodrigo era conhecido na rua. “Cinquenta reais”, respondeu. Havia escondido o resto do dinheiro dentro das calças. Domingos, esperto e calejado, conhecedor dos ardis dos meninos de rua, deu um duro golpe na moral de Rodrigo – e na sua também. Despiu o garoto com um movimento rápido e o dinheiro caiu. Tapa no rosto. “Acha que eu sou esses moleques otários que você rouba na rua? Quer tomar porrada?” Domingos pegou todo o dinheiro, vasculhou a carteira: “Para você se divertir”, e atirou a foto da suposta namorada do rapaz sobre Cerol. Saiu. Cerol, ainda sob o efeito do entorpecente, disse: “Um dia eu vou te matar, filho-da-puta.” Domingos fitou-lhe, indiferente, e disse, com uma calma assustadora: “Se você não morrer antes...”
Doze anos.
Passados alguns dias, Domingos encomendou um serviço a Cerol: matar um policial, companheiro de guarda, que supostamente sonegava a propina que recebia. Costa era seu nome. Arisco, Cerol perguntou: “Por que não faz você mesmo? Eu nunca matei ninguém, não. Não sei como se faz.” “Ora, rapaz. É fácil. Não pode pensar. Quando chegar o momento, você conhecerá a força que tem. É rápido. Além do mais, um dia você vai precisar. É bom que já aprenda.”
Cerol conhecia Costa. Não estava disposto a matá-lo. Mas tinha raiva de Domingos. Matá-lo-ia. Seria a vingança prometida e desdenhada.
No dia combinado, Domingos encontrou Cerol na entrada de uma viela. Entraram num bar. Domingos tirou uma arma da cintura e mostrou-a a Cerol. Não era sua própria arma que ele portava. Era uma arma sem registros, com a numeração raspada, clandestina. Pretendia incriminar Cerol sozinho, para depois matá-lo. Assim, o crime contra o Costa não podia ser com sua arma. Domingos explicou a Cerol como deveria proceder: “Ele está na rua, fazendo patrulha. Vou atraí-lo para o fim da rua Mem de Sá. Você não pode ser visto. Ele estará armado. Não respire. Se ele te vir, será fatal para você. O momento te dirá a hora certa. Atire. Você não pode errar.” Assim, Domingos eliminaria um concorrente e criaria a ocasião para matar Cerol, que era visto como um perigo futuro. Dois problemas resolvidos de uma só vez. Também estaria na cena do crime, porém não falara isso. Logo após Cerol matar Costa, Domingos mataria Cerol. “Me dá sua arma. Quero acabar logo com isso.” “Está no carro. Tome esta.” Cerol era perspicaz, sabia que Domingos não podia deixar o crime impune. Um policial morto, alguém teria que pagar por isso. E Cerol já decidira que a corda não arrebentaria para o lado mais fraco. Pegou a arma. Sentiu-lhe o peso; sentiu o peso de uma responsabilidade que não deveria pesar sobre seus ombros. Olhou nos olhos de Domingos – pela primeira vez fazia isso com uma vítima; Domingos emanava perfídias no olhar; olhos maus, vermelhos de sangue. Cerol apontou-lhe a arma; falou: “Filho-da-puta. Quem vai morrer vai ser você, desgraçado. Isso vai ser por todas as porradas que você me deu.” Domingos demorou para atinar; o pavor deformou-lhe a fronte. Quando ia ponderar, Cerol atirou. Certeiro. No rosto. Cerol deu mais dois tiros; correu. Domingos ainda estrebuchou. Olhos bem abertos, o sangue escorria de sua boca; o pavor estampava-se em sua fronte sem vida.
Cerol sumiu. Nenhum morador tornou a vê-lo. Estava submerso na lama que a sociedade lhe impusera. Talvez voltasse a praticar pequenos delitos; talvez se entregasse de uma vez à categoria superior de criminosos. O certo é que estava eternamente condenado, não pela justiça, mas sim pela injustiça da sociedade hipócrita que subjuga um pequeno ser, impelindo-o ao crime e aproximando-o da morte.

8 comentários:

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  2. Essa é uma triste realidade, retrata de maneira brilhante por você.

    Acontece diariamente nas nossas calçadas, com as nossas crianças, e fechamos os olhos! Fechamos o coração. Ou melhor, fechamos o coração. Quantas crianças e policiais corrompidos, vítimas de um sistema que não dá assistência, apenas assiste.

    "Seja marginal, seja herói!"

    Agora eu compreendo o significado disso.

    Poucas pessoas conseguem expor tal assunto de maneira bonita, deixando os leitores verem oss sentimentos que movem certas atitudes. Você conseguiu.

    Te amo.
    Beijos.

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  3. E sigo te admirando...
    Você é um escritor completo, moço.
    E infelizmente, essa é a nossa realidade.

    Beijo!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Relato impecável, Lipe.
    Tocou em um assunto relevante: a coragem dos "bandidos", ela só existe pelo uso da droga. Nenhum ser humanno bate de frente com o perigo de cara limpa.


    Excelente leitura.

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  6. Muito bom Felipe,

    Essa forma de ver, não foi só mais um julgando um menino sem base e sem estrutura, vê-lo como mais um resultado da nossa sociedade foram palavras bem escolhidas, é o soco no estômago de que precisamos pra ver a realidade!

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  7. Não consegui parar de ler nem por um segundo. A dor é tão real... Não é um caso ou outro isolado que acontece. É uma frequência gigante de nojeras nos inundando todos os dias...
    Você -d-escreve tão bem...

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  8. Grande... rs Mas eu gosto quando um texto é grande e tão bem escrito que nos puxa pra dentro e a gente nem percebe enquanto lê. A situação retratada é tão infelizmente comum né? rs Eu adorei o jeito como você falou disso. :)

    Ahhh, obrigada pelas felicitações, achei engraçada sua confusão e não entendi como pode o computador marcar taaantos dias de distancia na data. hahahahaha Eu ri.


    Beijos, querido. :)
    Volto mais aqui :*

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