segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O ser

Era uma noite sem luar. Na calçada, uns cães mendigos ladravam à minha passada. Uma aglomeração cercava algo; acerquei-me e constatei que o defunto que jazia no chão era um companheiro dos conluios sobre a revolução socialista que finalmente emanciparia o povo. “Porra, a revolução ainda nem começou e já perdemos um de seus comandantes.”, pensei. Morrera subitamente enquanto fumava tranquilamente seu cigarro, identificando na fumaça o transcurso livre do povo sem os grilhões da escravidão atual, após a tomada do poder pelo proletariado.
Um cidadão aproximou-se de mim, curioso, resmungando.
-Sujeito bom.
-Sim. Filho de Odé – repliquei.
-Filho de Deus – treplicou o cidadão, e se afastou, ofendido.
Pois sim, cidadão. Filho de Odé, caçador; camarada muito prezado por Exu, malandro, chapéu caído sobre os olhos. Exu gosta de festas, de confusão, entrega-se à balbúrdia e só sai quando vê tudo findado. Notívago, conhece os meandros da noite misteriosa. Exu é amigo do finado, que mantém relações estreitas com a revolução, que por sua vez é muito apreciada por Iansã, guerreira. Exu veio buscar a alma do descarnado para se acabarem nas orgias da noite carioca.
Foi-se o cidadão. E eu fiquei só na aglomeração, vendo que a morte pode ser gloriosa, mas o ato de morrer é ridículo: não se vê o choro dos órfãos, da viúva, não se pode consolá-los; olhando sem enxergar, até que um empedernido qualquer lhe feche os olhos e o impeça de olhar; sendo alvo de piedade ou, quando muito, de pilhérias sobre sua feia fisionomia intumescida e molhada pelos prantos dos poucos que o amaram na vida – se é que alguém o amou de verdade. Morrer é vergonhoso!
“Agora que morreu, de que adianta ser amigo?”, pensei, e segui meu rumo. Na verdade, não tinha um rumo, procurava apenas por uma porta aberta de bar, um novo camarada para tramar contra o governo de direita que não fora eleito democraticamente, um governo golpista e reacionário. Não encontrando, sentei-me na beira da praia, num ponto onde a onda, arrastando-se, tocava-me os pés, purificava-me a alma. Fui feliz nesse momento, e a brisa da madrugada trouxe consigo lembranças que julgava adormecidas até então, mas que se espalharam na cidade, ganharam o céu do Rio de Janeiro, e posicionou-se entre as estrelas a mulher a qual amei por tantos anos.
De súbito, a lua surgiu.
Seu nome é Madalena. Madalena punha a alma no sexo, e, quando eu precisava fazer um esforço desmedido constituído de carícias e palavras para apossar-me de sua carne, de seu corpo e de sua genitália, sentia-me igualmente apossado de sua alma, e levitava para junto das aves que dizem aos amantes em seus cânticos. Em tais momentos, absorvia a eternidade em longas tragadas, enquanto, no olhar de Madalena, eu via a lua. Era claro: ela também se encontrava perdida entre os astros.
Amar é sentir dor. Ali, sentado na areia, acomodado no leito azul do mar, eu constatei: não há amor indolor. Elementar. Queria alguém para conversar, para expor essa minha tese, aliviar o peito afogado em lágrimas. Amor é dor porque um amante somente não se basta. É preciso penetrar no outro ser, fazer dele um novo junto com o primeiro: ser uma carne, um coração, uma alma ramificada pelas vísceras em comum. O amor une, mas não funde. Os amantes que conseguem se fundir são plenos. E raros.
Inconscientemente, Madalena sabia disso. Tacitamente, sua consciência foi introduzindo essa ideia em seu peito, até que percebi: quanto mais Madalena me amava, mais infeliz se tornava. Ela queria ser parte de mim, ser o todo da minha felicidade.
As lágrimas que rolavam pela minha fronte ficavam depositadas na areia, misturavam-se às ondas, que as levavam consigo. Fundiam-se. Então concluí: as lágrimas e as ondas se amam; fundem-se porque se amam integralmente. Se eu seguisse aquele rastro, deparar-me-ia com o amor pleno e desejado por mim e Madalena, que também já chorara na beira do mar. Eu sabia, ela chorara. Não podia deixar de chorar. Sabia porque vi, e contemplei essa cena com os olhos do coração.
Então senti uma dor profunda dilacerar-me. Era como se as ondas levassem parte de mim, o meu amor e, portanto, Madalena. Pois, naquele momento, nossas lágrimas se juntaram, e com as ondas formavam uma partícula indivisível: o amor. O amor que tanto idealizei em vida; o amor que encontrei na morte. O único pensamento que podia deter-me era o seguinte: a revolução pendente perderia dois dos seus comandantes num só dia. Mas uma nova chama devolveu-me a coragem: a revolução é popular, e eu sempre acreditei na força do povo. Confiei a missão da organização para os mais novos. E fui encontrar o meu amor nas profundezas do oceano.
Sob o meu corpo, o leito azul do mar, límpido, convidativo, lindo, o depósito da minha paixão. Acima, o céu estrelado e a lua de prata que se refletiam nos meus olhos e no mar. Deixei-me ir. Não tive apenas lágrimas borrifando-me a face sem vida. Não pude secar o pranto de uma viúva, mas sorvi as lágrimas na face da mulher que amei.

8 comentários:

  1. Sentimentos tão reais, tão humanos, tão sinceros, sempre fico assim depois de te ler abobalhada, as palavras me somem da mente sabe?
    Sem mais delongas, seu texto é maravilhoso.

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  2. Hey, to organizando um sarau. Topa participar querido? Dá uma lida no meu post, no blog, a respeito da idéia do sarau.

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  3. Rapaz, você escreveu uma poesia em prosa.

    Texto triste, mas redentor. Essa visão que só os poetas têm, de amar e ser parte do outro, ser o todo do outro, é a coisa mais linda, mostra o romantismo de vocês e a alma sedenta de mais amor, sempre mais, que vocês têm.

    Adoro quando você se mostra um escritor completo. Quando você se mostra por inteiro.

    Em Noites Brancas, Dostoiéveski também não revela a identidade do personagem principal. rs Isso me chama atenção.

    Quanta destreza pra falar de amor! Fico ainda mais apaixonada sempre que saio daqui, depois de me deparar com seu lirismo.

    Receba meu beijo, meu abraço e minha admiração.

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  4. Parabens pela Cronica. Belissima e Avassaladora
    Passei aqui lendo. Vim lhe desejar um Tempo Agradável, Harmonioso e com Sabedoria. Nenhuma pessoa indicou-me ou chamou-me aqui. Gostei do que vi e li. Por isso, estou lhe convidando a visitar o meu blog. Muito Simplório por sinal. Mas, dinâmico e autêntico. E se possivel, seguirmos juntos por eles. Estarei lá, muito grato esperando por você. Se tiveres tuiter, e desejar, é só deixar que agente segue.
    Um abraço e fique com DEUS.

    http://josemariacostaescreveu.blogspot.com

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  5. Que inveja da Madalena! Que amor lindo...

    A revolução, o mar, a morte... Suas palavras me aproximam de tudo e me fazem sentir. Você é um belo poeta, seu lindo! hehehe

    Beijo grande!

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Não é à toa que mar vem de a-mar, não é? Lágrimas e ondas se fundem. A mesma cor,o mesmo gosto, a mesma imensidão - que depende da geografia física e humana. Enquanto elas passeiam pela face ou entre o calcanhar ou pelo corpo inteiro, alma e coração se encontram. Leves. A lua, de perto, quase te beijando, enche sua solidão de presenças distantes.

    Você é lindo, Felipe. E a Madalena teve (e tem) sorte. Ser protagonista de um texto seu, de uma prosa tão poética dessas... Me orgulharia.

    Abraço de urso, querido.

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  8. Felipe,

    Gostaria de dividir contigo a minha impressão ao concluir a leitura: talvez você não entenda, mas você me parece ter nascido no tempo errado. Pela foto, me parece jovem. Mas pelo idealismo expresso na crônica e o relativo romantismo, me parece pertencer a uma outra geração, anterior a tua.

    E quero que saiba também que, exatamente por essa razão, me identifiquei bastante com a tua produção textual. Também me sinto assim, pertencendo a um outro tempo, embora esteja ligado ao presente e de olho no futuro.

    Não por acaso (vi no teu perfil), sou também virginiano.

    Não sei se já estive aqui no teu blogue e se você conhece o meu, mas gostaria de convidá-lo a estar lá. Tenho certeza de que a tua leitura será enriquecedora e que estabeleceremos um diálogo estimulante.

    Feito o convite.

    Parabéns pelo texto.

    Marcio.

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