domingo, 31 de julho de 2011

Das políticas de ação afirmativa: Cotas.

Eu, em minha inocência quase tenra, acreditava que o debate sobre as cotas raciais já estivesse superado. Ledo engano: eis que se ergue, de dentro da universidade na qual estudo, um brado raivoso contra as políticas de ação afirmativa e, por conseguinte, contra as pessoas que delas se beneficiam.
Qualquer análise séria que se faça sobre as cotas deve levar em consideração os aspectos históricos que puseram em condição de antagonistas as diferentes classes sociais – e os indivíduos que a compõem. Como é dito e repetido, o país viveu trezentos anos assolado pela escravidão, período no qual os negros eram tratados como lixo, e tiveram de esquecer seus nomes, sua cultura, sua crença. Desnecessário estender esse tópico, por repetitivo e de conhecimento de todos, embora tenha que lembrar para alguns, que, por esquecimento ou astúcia, não o levam em consideração.
Passado algum tempo, surge uma esperança, uma manhã na longa noite dos negros: a abolição da escravatura. Fachada, balela: a emancipação dos negros, para ser plena, deveria vir pelas mãos dos quilombos, pelas mãos de Zumbi e dos seus. A Lei Áurea decretou o fim da escravidão oficial no Brasil. Por oficial, aqui, entende-se política do Estado. Porém, os negros continuaram sem acesso à educação, às condições mais primitivas para uma vida digna. Além disso, a falta de contato com a nossa sociedade e nossa cultura era mais um agravante para o ambiente hostil que se instalara. Que fazer? Estes negros soltos pelas ruas, é preciso extirpá-los! Surgem, então, políticas públicas de combate direto aos negros e seus costumes, sua cultura, suas manifestações. Surgem as políticas de combate à liberdade do país e ao seu povo. Os negros à parte, à margem da sociedade.
Embranquecimento, sanitarização: entretanto, os negros resistiam. Lei da vadiagem, aplicada exclusivamente a negros e mulatos. Virulência, perseguição, tentativa de macular ou esconder um povo, uma cultura. No entanto, uma teoria merece atenção especial: a teoria da democracia racial, que não era uma política explicitamente racista, mas impossibilitava qualquer avanço na luta do movimento em favor dos negros; uma teoria segundo a qual, por sermos um país miscigenado, houve uma grande mistura de raças, e dificilmente exista alguém que não tenha um parente negro em sua árvore genealógica. Até aí, tudo bem, a miscigenação formou o povo brasileiro. Mas, a partir do momento em que se diz que temos uma democracia racial instalada neste país, chega-se à conclusão de que não temos racismo. E, se não temos racismo, não combatemos o racismo, obviamente. Então, a primeira questão que deve ser levantada, nesse quesito, é: a quem serve esse discurso de que temos uma democracia racial? Ora, parece-me claro que quem se beneficia com ele são as classes dominantes, aqueles que estão em posição privilegiada na sociedade e não estão dispostos a ver mudanças estruturais no país.
É preciso desconstruir certos mitos, propagados por pessoas que não medem esforços para desqualificar o discurso de quem defende as políticas de ações afirmativas. O primeiro mito é aquele que afirma que as cotas acirram as desigualdades e estabelecem a ideia deque os negros têm capacidade inferior. Bem, quem acirra as desigualdades: nós, que defendemos as cotas e promovemos uma política de inclusão, ou os que preferem calar o debate e naturalizar a ausência de negros nas universidades do país? As cotas são, sim, uma política de combate ao racismo, a partir do momento em que põe no ensino superior negros que vão, de dentro da academia, produzir questões relevantes ao povo negro e sua emancipação. Além disso, no bojo das cotas, vem outra questão muito importante: a descolonização do conhecimento, preso, desde remotas épocas, às pessoas de poder aquisitivo elevado, quase hereditário.
Outro argumento pífio utilizado pelos que não se beneficiam com as cotas e têm oportunidade de estudar nos melhores colégios de preparação é o seguinte: “é preciso melhorar a educação pública.” Sim, é consenso que a educação, do maternal ao ensino superior, deve receber maiores investimentos. Porém, isso leva dez anos, e o negro, jovem, não pode esperar esse tempo todo para entrar na faculdade. Ele precisa de qualificação agora, para que não pare em trabalhos que exigem pouco estudo, mas que não oferecem a mínima condição de uma vida digna, e que não respeitam leis trabalhistas. Ou, ainda pior: para não acabar no mundo do crime. Uma coisa, no entanto, é certa: as cotas não podem ter fim em si mesmas. É necessário discutir o investimento público no setor, a fim de elevá-lo. É fundamental pressionar o governo para aprovar duas medidas importantíssimas: o investimento de 10% do PIB na educação e a destinação de 50% do Fundo Social do Pré-Sal para esse setor, um projeto de autoria do senador Inácio Arruda, do PCdoB – CE.
Numa visão marxista, todo fato que se dá na sociedade deve ser analisado sob diversos aspectos. O histórico já foi abordado, bem como a necessidade de promover políticas de inclusão. Salientarei, agora, alguns exemplos e fatos que ocorrem pelo Brasil e pelo exterior, a fim de ilustrar como acontecem a discriminação e suas nuances.
A eleição do presidente Barack Obama representou um importante avanço para o movimento negro mundial. Por mais que se saiba que era um candidato que não se diferenciava dos governantes anteriores, que não adotava uma postura progressista, sua candidatura abriu espaço para discussões relevantes. Num país em que o problema do racismo é muito mais grave do que no Brasil, além de adotar posturas imperialistas e belicistas, a vitória de um presidente negro era uma esperança. No entanto, bastava uma análise mais aprofundada para perceber que não era isso, Obama não faria mudanças na estrutura do país. Porém, independente de pauta política, era importante para que os negros de todo o mundo vissem naquele homem negro, bem-sucedido e estudante da Universidade de Harvard, uma figura capaz de gerir a principal economia do planeta. Decorrido esse tempo, está provado que Obama manteve a linha política adotada por seus antecessores, inclusive a do último, G. W. Bush.
Não faz muito tempo que alguns movimentos sociais, entre os quais a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União dos Negros pela Igualdade (UNEGRO), promoveram uma pesquisa sobre as religiões de origem africana no Brasil. Uma coisa chama a atenção: constatou-se que as casas, os templos onde são realizados os ritos de louvor aos santos africanos ficam em locais distantes dos grandes centros, onde a violência atinge altíssimos graus, onde o saneamento básico é precário, o transporte público é de péssima qualidade e, o mais aterrador: onde a discriminação tem toda força. Foi testemunhada uma cena terrível, quase inacreditável: um culto de uma religião protestante em frente a um terreiro no qual era realizada uma sessão de candomblé; eram gritadas palavras ofensivas, eram excomungadas as pessoas que professavam a fé oriunda de África. E isso porque o Estado é laico, e todas as pessoas têm assegurado o direito de professarem sua fé...
Apenas 14% dos jovens brasileiros estão no ensino superior. Desse número, qual será a porcentagem que cabe aos negros? Mínima. O racismo é um problema sério no país. E quem se nega a discuti-lo acaba contribuindo para a sua permanência. A UERJ deve se orgulhar de ser pioneira na implantação do sistema de cotas no Brasil, ao invés de ser foco de gritos a favor da exclusão. Mas é importante colocar, também, a posição que diversas universidades brasileiras assumem sobre o tema. O caso Ari, até hoje, provoca arrepios. Ari, estudante da UnB, universidade mais elitista do país, foi reprovado em duas matérias, nas quais havia obtido excelentes notas, por ser afro-descendente, num programa de doutorado que, diga-se de passagem, nunca admitira um negro em toda a sua história.

2 comentários:

  1. Há ainda tanto que se mudar, modificar, entender. A nossa estrada é longa meu amigo.

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  2. Adoro quando você polemiza! haha
    Cara, você tá muito bem qualificado nesse debate. Apresentando dados, fatos, história. E o legal é que a sua fala vai desconstruindo a fala de quem é contra.

    Depois dessa, só vai ser contra quem "não se beneficia com as cotas e tem oportunidade de estudar nos melhores colégios de preparação."

    Muito lindo, o poeta engajado.
    Beijos.

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